A tartaruga de vovó

Marcio Rosa
6 min readSep 9, 2022

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Para Clelia e Ivani, avós do meu guri

Adoro visitar a casa da minha vó! Lá é o lugar mais legal de todo mundo. Ou do que restou dele, né? Ela tem dois gatinhos lindos, desses robozinhos, e lá sempre tem janta, paçoca e guaraná. Eu posso brincar do que quiser e ficar muito mais tempo conectado do que na casa da minha mãe. Faço tudo o que eu gosto e minha avó está sempre sorrindo.
Mas nesse dia minha vovó Violeta parecia estar preocupada com alguma coisa. Eu tomava um lanche, suco com sabor de laranja e sanduíche de queijo vegetal e ela tricotava desatenta olhando para o apresentador do telejornal no projetor de hologramas da sala. Não entendo nada desse papo de guerra, mas vejo que os adultos estão todos muito agitados com isso. Até mesmo vovó. Pergunto o que está acontecendo, mas ela ajeita os óculos, me olha com carinho e diz que não é coisa para criança.
Sem mais nem menos, vovó levantou do sofá e disse que precisava sair. Um mal pressentimento que ela precisava ver o que que era, urgente. Pediu que eu aguasse as plantas enquanto esperava. O céu, sempre limpo embaixo da enorme tampa de vidro que cobria tudo, refletia o sol que batia de leve no quintal no fundo da casinha azul que eu tanto gosto. Ela avisou que tinha bolo na geladeira, e que ia demorar um pouco, mas que não era para eu ficar preocupado. Fiquei ali fazendo carinho no gatinho robô, sem entender bem o que estava rolando.
***
No salão amplo, sustentado por colunas que se erguiam como galhos de árvores, iluminado por amplos vitrais que coloriam o ambiente, uma gritaria fazia a chefa da assembleia revirar os olhos e balançar a cabeça em negativa. Mesmo idosa, a senhora negra se levantou com um ímpeto improvável e começou a bater a mão na campainha, enquanto sua voz pedindo calma e silêncio ecoava grave pelos alto falantes do salão:
— Parece que vocês não aprenderam nada com a história. Uma outra civilização já destruiu nosso planeta, e agora vivemos nessa nave. Precisamos tomar alguma providência contra esse polvo indecifrável — gritava o conselheiro Augusto, bastante exaltado.
— O grande polvo que você quer atacar é sagrado. Como pode falar uma barbaridade dessas? Foi ele que nos salvou dos insetos que destruíram o planeta. A gente deveria agradecer, mas estamos aqui pensando em atacar nosso salvador — bradou um sacerdote chacoalhando seu cajado bem na frente da sessão.
O volume do falatório aumentou. Mesmo com a resistência de muitos dos membros do conselho, o medo já tinha contagiado diversas famílias, deixando o ambiente pesado entre os raios de luz colorida que aqueciam o ambiente.
— Foi esse tipo de covardia que acabou com a gente. Um povo sem força para se defender está condenado a ser escravo — prosseguiu Augusto.
— A história não foi bem assim, você sabe disso — uma pessoa da plateia gritou, mas foi logo abafada por muitas outras vozes cheias de raiva dizendo que alguma coisa precisava mesmo ser feita.
— A história não é um conto de fadas. A humanidade está reduzida a um pequeno cardume Retirante. Não temos o direito de sermos fracos agora. Precisamos atacar, antes que alguma coisa pior aconteça — respondeu uma mulher branca, com os filhos pendurados nos peitos, mamando.
— Ninguém mais aguenta tanta guerra — responderam do fundo da assembleia.
— Meu caro Augusto — chamou com firmeza delicada a chefa da assembleia —, creio que você já percebeu que está criando muita confusão. Por mais demorado que seja, nós aprendemos que as melhores escolhas são coletivas — prosseguiu em tom de professora de primário — e, como sabe, todas nossas decisões são tomadas por consenso progressivo, depois de muita conversa e convencimento. No grito que ninguém vai ganhar nada por aqui.
— Toda essa conversa ainda vai matar a gente! As forças armadas estão nos avisando que as movimentações do polvo gigante são muito suspeitas, potencialmente mortais para a humanidade. Aquela coisa tem um poder de fogo incomensurável, e nós nunca soubemos, realmente, quais eram as suas intenções — Augusto gritava, cada vez mais exasperado — Se ninguém vai fazer nada, eu assumo a responsabilidade. Peço um voto de confiança desse parlamento, para ser escolhido como líder militar e salvar o que restou da humanidade.
A plateia toda paralisou nesse momento. O que podia até parecer improvável ganhava força a olhos vivos, e engrossava o caldo com o eco do medo. Foi quando um batalhão de soldados entrou na sala sagrada do conselho e se colocou ao fundo, perfilado. A chefa da assembleia levantou indignada e quase voou no pescoço de Augusto. Todos podiam ouvir os xingamentos que aquela senhora gritava em todos os comunicadores da assembleia. Golpistas do caralho, filhote de Temer, canalhas.
***
Minha avó demorou um pouco mas voltou. Eu já estava ficando entediado, e cheguei a pensar se ela voltaria mesmo. Só me acalmei mesmo quando ouvi ela se aproximando e a inteligência artificial da casa abrindo o portão. Chegou cansada, ligou o projetor holográfico e pediu um abraço. A única coisa que se fala em todas as redes sociais é da guerra, se o polvo é perigoso ou não, e da tal da reunião do conselho popular. Queria que eu ficasse quietinho, mas não consegui.
Às vezes tenho que ficar com vovó porque minha mãe precisa trabalhar e nem sempre pode cuidar de mim. Minha mãe fala pra eu não ficar perguntando sobre a guerra, que isso faz muito mal para minha vó por causa do meu pai, seu filho que morreu em combate. Por isso também não devia ficar perguntando sobre a guerra. Poxa, eu sou uma criança, mas também tenho o direito de saber o que acontece no mundo.
Mas dessa vez não pude me segurar. De tanto que eu atormentei, que perguntei o que era aquele domo de vidro enorme que cobria toda a cidade, como o mundo tinha se transformado em uma tartaruga gigante que orbitava no lugar onde ficava a Terra, quem era o cientista indiano que tinha inventado essa embarcação tão exótica, a Retirante, onde vivem e viajam todos os humanos que restaram, porque os insetos nos atacaram destruindo o planeta, e porque aquele polvo gigante apareceu para ajudar, o que era a guerra e onde estava papai. Ela finalmente respondeu, com um sorriso de avó, e só então me dei conta de quem realmente ela era. Sou uma criança, afinal, e não entendo bem como são essas coisas de adulto.
***
— Augusto, seu merda. Tá pensando que é quem, o Pinochet? — gritou a chefa da assembleia, mais com raiva do que assustada — Não sou uma pobre senhora como você imagina. Enquanto você vai com o milho eu já estou voltando com o fubá. Nenhum filho de mais nenhuma mãe vai morrer nessa sua guerra inútil e louca, seu golpista traidor. Essa nave é o nosso mundo, nosso destino e nossa paz.
As tropas que tinham entrado sob comando de Augusto paralisaram quando viram a multidão que cercava o local em apoio à assembleia. Eram uma voz só gritando contra a guerra, pelas suas famílias e pela democracia. Todo o restante do exército também estava ali, para demonstrar sua lealdade à Assembleia. Os poucos conselheiros que tinham participado do motim foram presos e Augusto se retorcia de dor no chão. A agulhada psíquica era uma espécie de consequência do vazamento de seus pensamentos sobre a guerra e o poder, que Violeta tinha percebido com toda sua sensibilidade de avó. Uma pena até suave comparado com o todo o mal que ele teria causado.
— Chefa Violeta, posso levar preso esse traidor? — perguntou o responsável pela guarda.
— Por favor. Agora que esse canalha foi preso, e o golpe eviatado, eu preciso voltar. Cuidar do meu neto que eu deixei sozinho em casa, e deve estar com saudades de mim.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]