Amazo, a cidade-floresta

Marcio Rosa
4 min readJul 15, 2021

--

Ilustração de Moara Brasil
Ilustração de Moara Brasil

Quando Aihâ’ré entrou na sessão, meu coração acelerou. Ela parecia brilhar com seu cinto amarelo, colares de luz sobre o colo desnudo, os desenhos geométricos e fluorescentes descendo pelas pernas. A prótese de madeira e cipó no lugar do braço, que usava por conta de um acidente que teve com um jacaré, era um verdadeiro prodígio da engenharia vegetal. Quase derreti quando ela me deu aquele sorriso enigmático, cheio de dentes.

A anciã, Dona Mariquinha, conduzia o ritual com seus trejeitos de garça. Parecia mais velha que o tempo, trazia o rosto enrugado e desenhos verde neon pelos braços. Sua voz firme e pausada fazia balançar suavemente seu saiote de miçangas e me enchia de pensamentos. Enquanto ela falava, caminhava e batia os pés com chocalhos emplumados, e a gente virava adulto.

A luz da manhã invadia a construção através dos galhos emaranhados, unidos com um polímero especial extraído da seringueira. O cheiro de umidade preenchia o salão, misturado ao aroma doce de patchuli. Sentado no chão, graves como onça na espreita, ouvíamos as palavras da Dona Mariquinha e eu pensava no futuro. Lá fora, Amazo, a cidade-floresta, nos cercava e protegia, com suas torres e árvores enormes.

Eu sabia que era errado pensar isso, mas achava Aihâ’ré muito estranha. Feia? A anciã falava sobre ciclos da vida e responsabilidades, mas eu só conseguia prestar atenção nas esquisitices dela. A pele clara e fina, sem penas nem pelos, parecia frágil e infantil. Não nadava ou voava, nem se camuflava na mata.

Eu tinha me tornado um membro da família dos tucunarés. Minhas primeiras escamas brotavam junto dos pelos e um par de guelras crescia debaixo das minhas orelhas, rasgando meu pescoço nas laterais. “Há muito tempo atrás”, explicava a anciã, “nosso povo percebeu que era preciso aprender com os animais, viver como eles. Enquanto alguns homens com nomes em inglês tentaram colonizar o espaço, nossos cientistas avançaram na engenharia genética”.

Aihâ’ré olhava para mim toda hora. Acho até que vi uma piscadela, e fiquei com as bochechas queimando. Todos exibiam orgulhosos sua ancestralidade animal pelo saguão: penas de garça, escamas de peixe, a transparência das águas vivas. Todos, menos Aihâ’ré. Ela mais parecia um bicho de minhoca. Credo. Porque meu coração palpitava fora de ritmo? Acenei de volta, tímido. Ela me passou um bilhetinho, um convite para um sorvete depois da cerimônia, com um coração.

Fiquei com medo de magoá-la e acabei aceitando. Escrevi sim no papel, e devolvi o recado todo dobrado. Minha mão suava e meu coração acelerava conforme a cerimônia avançava. Mesmo esquisita, Aihâ’ré era muito legal. Todos sempre riam muito com suas piadas, e seus olhos azuis e pequenos brilhavam nas brincadeiras de criança. Sua pele fina reluzia ao sol, mas tinha que voltar logo para a sombra para não se queimar. Eu sempre ficava um pouco com ela nessa hora. Também gostava muito da sua risada, barulhenta e engraçada. Acho que ficava bonita quando sorria, cheia de dentes.

Todo mundo sabe que não tem problema nenhum ficar com pessoas de outras ancestralidades. Mas será que pode ficar com alguém que não tem nenhum animal sagrado? “Bem-vindos às suas novas famílias, aos seus novos corpos. Um novo mundo os aguarda!”. Era muito estranho alguém não ter nenhum melhoramento. Qual seria o problema dela? E o meu?

Caminhando para a sorveteria pensei em pavê de cupuaçu, o sabor predileto dela. Vários amigos nossos estavam por lá, tentando enfrentar o calor que fazia naquela manhã de sol. Aihâ’ré tomava uma casquinha e sorria com aquela boca para um figura com cara de tartaruga marinha. Pietro. Pronto, agora estou também com ciúmes, além do medo. Meu coração acelerou e eu respirava com a boca, com as guelras nascentes bem abertas. Não sei porque fui até lá brigar com eles. Agora estou com vergonha do que disse, do que fiz.

Só voltei para casa com a lua bem alta, que iluminava meu caminho trôpego. Tinha bebido um pouco, pra tentar esquecer. Pensava na minha vergonha e em como seria difícil me desculpar para a anciã. Ofensas, agressão verbal e violência eram crimes muito graves. Sem falar do preconceito. Como pude ser tão idiota? Sentada na entrada da casa coletiva, Aihâ’ré me esperava. Me olhou com ternura, longamente, e ficamos por ali, quietos, por muito tempo.

Quando o sol despertou por trás das árvores e os pássaros começaram a cantar, Aihâ’ré foi embora. Ela nunca mais falou comigo, nem quando seus dentes de jacaré brotaram. Fui condenado ao exílio depois da sua denúncia. Ostracismo. Amazo, a cidade-floresta, queria ser um paraíso, mas eu não estarei mais por lá para ver. Agora, enquanto eu me afundo na mata, os urubus rodam em cima da minha cabeça.

--

--

Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]