Amor, drogas e Deus

Notas sobre Carl Hart, bell hooks e Octavia Butler

Marcio Rosa
6 min readFeb 23, 2022

Admiro muito pessoas corajosas, que dizem as coisas sem meias palavras, que se posicionam e assumem os riscos (e as delícias) de suas escolhas. Precisamos dessas pessoas para nos inspirarem, e também para nos colocar para pensar por nós mesmos, confrontar as verdades estabelecidas.

Recentemente li três livros de assuntos diferentes, mas cheios de coincidências e concordâncias. “Drogas para adultos”, do Carl Hart, professor, especialista em drogas e neurocientista; “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, professora, conhecida ativista feminista e crítica cultural; e o romance “A parábola dos talentos”, da Octavia E. Butler, premiada escritora de fantasia e ficção científica.

São três livros escritos por estadunidenses negros. O livro do Carl Hart é mais novo um pouco (2020), mas os outros dois são de 1998 (Parábola) e 2000 (Amor). São, portanto, três obras bastante contemporâneas, e que conversam muito com problemas e anseios atuais. São três livros que, de alguma forma, antecipam o avanço conservador e o desespero que vivemos hoje. Mas também que apostam em um futuro melhor, construído pela ação consciente das pessoas, com amor e responsabilidade.

São três livros verdadeiros. Sobre a importância de falar a verdade, de ser honesto e responsável com as pessoas. Sobre amor e uma ética amorosa. Sobre escolhas, liberdade e responsabilidade. Sobre acreditar nas pessoas, construir parcerias e moldar um futuro mais justo e inclusivo. Do ponto de vista formal, guardada todas as diferenças, os três são muito claros e diretos. Querem ser didáticos, explicar e convencer as pessoas. Tem até um tom de sermão, que casa muito bem com a proposta, tornando tudo mais acessível e direto.

Na minha vida pessoal tenho procurado estabelecer relações mais honestas e verdadeiras, e essas três leituras ajudaram muito a pensar na minha prática no mundo, na forma como eu ajo ou deixo de agir e como isso se relaciona com minhas crenças e meus valores. Estou convencido que mudar o mundo é uma escolha, e que devo ser responsável por minhas escolhas e suas consequências. A hipocrisia apodrece a alma.

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O livro do Carl Hart, em resumo, defende o direito das pessoas de usarem drogas para buscar a felicidade, com consciência e responsabilidade, como indivíduos adultos. Apresenta uma série de informações sobre a natureza e os efeitos de diversas substâncias, legais e ilegais, junto de uma contextualização histórica e social do uso dessas substâncias, questionando sempre a política de guerra às drogas e seus efeitos perversos, que incidem principalmente na negritude e nos mais pobres. E, igualmente importante, nos conta um segredo que todos escondemos: praticamente todo mundo usa algum tipo de droga. De calmante a maconha, de álcool a cocaína. Portanto, a proibição de algumas substâncias não apenas é arbitrária (pode destilado, mas não pode maconha), mas também é uma ferramenta de controle e exclusão social, de necropolítica. A proibição não tem nada a ver com saúde, tem a ver com ignorância e estruturas de poder.

Mas, o que chamou mesmo minha atenção é a parte pessoal do livro. O autor, um renomado cientista, assume no livro de forma pública que ele mesmo faz uso de diversas substâncias, de MDMA e anfetaminas a heroína. É preciso muita coragem para assumir essa postura publicamente. Como ensinou a bell hooks, dizer a verdade é um ato de amor. “Permanecer no armário quanto ao uso de drogas me parecia covarde e desonroso. Por que devo ser obrigado a ocultar uma atividade de que gosto, ainda mais quando ela não afeta negativamente outras pessoas? Não sou criança nem serei tratado como uma” (p. 79). Essa postura, franca e verdadeira, firme e corajosa, me inspira e me faz questionar minhas posturas (sobre as drogas e sobre a vida).

Já o livro da bell hooks é uma lindeza. Não porque fala de amor romântico, porque é lírico ou algo assim, mas porque tenta explicar o que o amor realmente é. Não por glorificar um amor absoluto e impossível, mas por apontar as origens do amor e os problemas que nascem nas famílias e arrastamos pela vida. Não porque trata o amor como algo mágico, que simplesmente nos arrebata como uma revelação, mas porque revela formas e tipos diferentes de amor, do amor próprio ao amor conjugal, passando pela comunidade, pela religião, etc. É um livro que busca precisão e clareza, que busca desmistificar o assunto, que tem a coragem de encarar a questão de frente, sem rodeios. Que me coloca como responsável pelo amor.

Para mim, sua maior coragem é propor uma ética amorosa. Uma outra postura, outra prática, outra forma de vida. “Uma ética amorosa pressupõe que todos tem o direito de ser livres, de viver bem e plenamente” (p. 123). Essa ética deriva da definição de amor, pensado como uma ação, uma escolha: “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. A autora nos faz confrontar nosso próprio cinismo, e nos convida a mudar de postura. A franqueza com que trata do assunto é quase assustadora, mas sua gentileza me convenceu a procurar mais amor, a mudar de vida.

Por fim, o livro da Octavia Butler é um romance intenso, cheio de desgraças, mas comovente e arrebatador. É a segunda parte (e final) da saga “Semente da Terra”, que conta a história de uma jovem em um futuro distópico (tipo um governo Bolsonaro - Malafaia piorado) que vê sua família morta e precisa fugir, funda uma comunidade e quer dar início a uma nova religião. Mas também é uma história sobre comunidades, grupos de pessoas, sobre escolhas e sobre sobrevivência.

Diferente das distopias que marcaram os anos 70 e 80, onde nada tinha saída e todos eram horríveis (mesmo os heróis), o livro adianta uma perspectiva afrofuturista ao oferecer um futuro melhor, onde a superação da distopia aparece através da construção de uma comunidade, de certa forma pela escolha de uma ética amorosa. Tudo isso atravessado por uma religião, a semente da terra, criada pela protagonista, que não deixa de ser uma forma de comunhão. Os versos do livro sagrado criado por ela são ótimos, porque indicam uma postura prática sobre o mundo, uma escolha corajosa:

Tudo o que você toca

Você muda.

Tudo o que você muda

Muda você.

A única verdade que persiste

É a mudança

Deus é mudança.

Ou ainda:

Deus é mudança,

e no final,

Deus prevalece.

Mas enquanto isso …

A gentileza facilita a mudança.

O amor arrefece o medo.

E uma doce e poderosa obsessão positiva

atenua a dor,

redireciona a raiva,

e recruta cada um de nós

para a maior,

e mais intensa

das batalhas que escolhemos lutar.

Acredito que não seja tanta coincidência assim os encontros entre esses livros. Afinal, são três livros escritos por pessoas negras dos Estados Unidos mais ou menos na mesma época (diferença máxima de vinte anos). Curiosamente, os três livros também foram escritos quando os autores tinham mais ou menos a mesma idade - Hart tinha 54 anos, hooks tinha 48 e Butler 51 anos quando escreveram as obras referidas. São livros de pessoas negras experientes, que já viveram muito tempo, sofreram por muito tempo, como a personagem da Parábola dos Talentos, que são sobreviventes e não aceitam mais o lugar que lhes foi imposto, a forma como vivemos, a injustiça e a desigualdade.

A vida cotidiana, que meu xará Marcio Funcia chama de “vidinha”, é a vida que todos nós vivemos todos os dias. É, também, a vida real, com suas alegrias e tristezas, surpresas e pequenas tragédias. Depois de ler as três obras, pra mim ficou uma necessidade de levar a vida cotidiana de uma forma mais consciente, crítica. O romance da Butler, como uma espécie de ciência da alma, ilustra bem a força e as dificuldades dessa forma de viver a vida. Com a firmeza do Hart que não se permite ser tutelado, e a consciência e o amor tão bem explicados pela bell hooks.

Os três olham para frente, em cima de um mar de sujeira, covardia e medo, com um pesado passado de escravidão e violência nas costas e ainda dizem: “Vamos lá! É difícil, mas o futuro será melhor. Depende da gente”. Olho para eles e digo com força: “É nesse futuro que eu quero estar”.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]