AMORES SÃO DE MARTE

Marcio Rosa
3 min readJul 31, 2021

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Na noite alienígena abençoada por Phobos e Deimos, o vento azul tinha um gosto discreto de ozônio, um gelado paladar de cloro. A cidade artificial, mais base militar e entreposto comercial que propriamente um lar, era fria e seca, o ar condicionado eternamente ligado sob a enorme cúpula de vidro que cobria tudo e todos. No letreiro do bar, que zunia em alta frequência, estava escrito A Astronauta — Drinks e Diversões. O segurança com cara feia abriu a porta e veio uma lufada de som lá de dentro, jazz quântico da pesada. Entrei, ansioso com o encontro.

A pressão da música alta ecoou no meu peito como uma angústia. Meus olhos foram se ajustando à baixa luminosidade, até eu me acostumar com a penumbra. O amontoado de cheiros químicos daquele lugar me colocou em alerta. No meio deles, o perfume de Joana se destacava, brilhando intenso e amadeirado, me fazendo lembrar de amor, vinho, sexo, brigas e separação. Pedi um Mars Mule, ardido e doce, que acariciou meu esôfago e aqueceu minhas extremidades, meu ânimo.

Encostei no balcão ao lado de duas insectóides que conversavam animadas, espalhando feromônios pelo ar. A fala delas era povoada de flores e frutas maduras, um pouco de alecrim com manga e pêssego, cheiros de felicidade e de amor. Lembrei de minha infância na Terra, quando a gente ainda podia brincar na rua e até existia um “lá fora” onde ir, com cheiro de terra molhada e de chuva.

Joana veio em minha direção. A pimenta azul marciana, picante e ardida, misturada com a vodka russa, me embebedou rapidamente. O beijo do Joana, um selinho estalado, foi exótico como o drink: forte e rápido, intenso e revigorante, satisfatório e marciano. Senti o mesmo gosto de margarita que ela bebia quando nos conhecemos, e me afoguei nos sentidos de seu perfume mágico.

Os copos cintilando na luz negra, o ritmo do jazz elevando minha consciência, o cheiro de álcool, o calor vindo em ondas junto do som, me faziam flutuar. Falei para Joana como a gente era diferente. Como a vida que a gente levava me fazia mal, como eu odiava aquele maldito planeta, falei dos meus sonhos e tristezas, e de como eu queria jogar tudo para cima e viver em paz, em outra parte da galáxia. Ela me falou de seus sonhos e frustrações, das minhas limitações de humano, de como eu era chato e covarde, e também que me amava muito e que precisava de mim.

Comecei a suar. Meu casaco anti radiação começou a me incomodar. Desde que eu era criança, lá na Terra, tinha muito medo de tirar o casaco, de tanto que a minha mãe falava que ia fazer mal. Agora não estou mais na Terra, nem minha mãe está aqui. Levantei, tirei meu casaco, e perguntei pra ela se queria dançar comigo. Seus tentáculos se enrolaram, macios, em toda extensão de meu corpo, e pude sentir suas pequenas ventosas me beijando, múltiplas carícias, sua textura escamosa e suave, sua composição gelatinosa e saborosa, seu cheiro de mar e de formiga, um toque estranho e tântrico nos seus lábios de polvo.

Somos mesmo muito diferentes, pensei comigo, enquanto a gente dançava, rodando pelo salão. Isso não pode dar certo, nunca vamos ficar juntos. Ela quer casar, monogamia mesmo, e eu estou mais para tentar novas experiências, novas espécies de relacionamento.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]