AZUL

Marcio Rosa
5 min readJul 27, 2022

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Meu pai costumava assistir esses programas de vida natural toda tarde. Depois de fazer comida para eu e meu irmão, que chegávamos da escola cheios de fome, ele ficava sentado na poltrona vendo um desfile das intimidades de leões, insetos e zebras que passava na TV Cultura. Eu não me interessava muito, talvez por ainda não estar aposentado, até que um dia um imenso azul me sugou para a tela, me deixando hipnotizado, com a boca aberta e o coração em arritmia: era o mar, cantado pelo aventureiro Jacques Costeau desde lá do fundo.

Fiquei deslumbrado com aquela multidão de peixes multicoloridos voando dentro da água, as águas vivas e caravelas, toda a floresta de corais que proliferava no fundo do oceano, os polvos cheios de tentáculos e os caranguejos com suas carapaças. Todo um universo submarino que me relaxava e fazia sonhar. O azul se tornou uma obsessão para mim, o lugar onde eu encontrava a paz e cheirava a tranquilidade. Eu precisava conhecer o mar, de todo jeito, mas ainda era criança e morava no interior. Pedi, insisti, chorei, fiz e aconteci, até que nas férias escolares dos meus 12 anos meu pai resolveu que a família toda ia para a praia.

A viagem foi incrível, uma verdadeira aventura. Todos nós juntos no carro, embaixo do céu anil que nos protegia por todo caminho. Minha mãe fez sanduíches e meu pai até cantava com o rádio do carro, enquanto eu brincava com meu irmão. A gente era uma família feliz mesmo. A chegada no litoral foi uma alegria só, assim como os preparativos para irmos à praia, dos lanches até a cadeira e o guarda-sol. A vida era calma e azul, como vê o passarinho que vai sair do ninho pela primeira vez.

Assim que cheguei, entrei na água e mergulhei fundo. Nunca mais retornei. Desde aquele dia passei a viver no fundo do mar. Foi desoladora a despedida, mas eu não podia evitar. Minha mãe chorando, meu pai desesperado, se perguntando onde tinha errado, meu irmão sem entender nada, amuado, tristinho. Eu sempre estaria por ali, tranquilo dentro da imensidão azul, pronto para receber minha família com peixes frescos e algas marinhas, não via motivo para tanto. Fiquei com a impressão que eles não entenderam muito bem quando eu finalmente pude mergulhar fundo na imensidão azulada do oceano.

Eu caminhava pelo assoalho do mar com milhares de toneladas de água sobre minha cabeça. Pensava nas pessoas que morriam afogadas, entrando no mar altos de caipirinha, nos sacos plásticos que sufocavam a vida marinha, nos pescadores da Picinguaba que tinham seu ganha pão ameaçado pelo avanço da pesca predatória. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, mesmo submerso, quando lembrei da cara de meu irmão mais novo se despedindo, acenando e segurando o choro. Mesmo mergulhado no azul percebi que a paz era uma ilusão que a gente persegue quando não tem mais muito o que fazer.

Depois de uma longa temporada descobri que todo espetáculo tem de ter o seu fim, nem que seja necessário o espectador levantar da sua poltrona no teatro cheio e sair xingando os atores. Foi o que Roberto me disse, um sujeito magro, de óculos redondos e barba mal feita, que chegou de escafandro e falava coisas inusitadas todas as vezes que nos encontrávamos entre algas e crises existenciais.

— Esse negócio de paz não existe, meu caro, nem no mais profundo azul.

— Porque diz isso? — perguntei

— Sou daltônico, sei bem do que estou falando — me respondeu com uma piscadinha.

— Nem o céu? Dizem que a Terra é azul do espaço. Você tem certeza que o azul não existe?

— Absoluta.

Fiquei com aquela conversa na cabeça. Os peixes voadores, golfinhos e baleias juravam que o céu era mais azul do que o mar. Roberto me explicava que o ar nem tem cor, que era tudo uma ilusão, um truque de luz, mas eu não conseguia aceitar. Para mim, tudo sempre foi uma ilusão. Eu já não me lembrava bem como era o céu, e fiquei com muito medo de sair. A violência do mar em sua superfície, a mirada de toda sua imensidão, o sentimento de alívio e morte do corpo flutuando na água sem nenhuma chance contra o inimigo ciano pesavam como a pressão dos quilômetros de profundidade das fossas abissais. Mas emergi como quem nasce de novo. Compreendi que, depois de um tempo, é inevitável.

Em cima de mim, antes do céu, nuvens gigantescas se ergueram em formato de cachorro, de pássaro, de coisa indefinida. O branco não é a cor da paz, é a cor da dúvida. O vento soprava como correntes marinhas, e os pássaros me sobrevoavam como um cardume de tilápias voadoras. Quando eu me mudei pela primeira vez foi muita tristeza e dor. Até hoje aquelas lágrimas ecoam no meu pensamento. Eu precisava sair, conhecer o oceano. Agora preciso ver o céu. Será que devo me arriscar? Será mesmo que o céu é azul como eu enxergo por trás das montanhas de nuvens, ou será que Roberto estava certo, e é tudo uma ilusão? Que meu pai diria sobre isso? E Jacques Costeau, teria uma opinião, ou só falava sobre coisas do mar?

Aprender de novo a respirar fora da água foi especialmente traumático. Primeiro a asfixia, o desespero, e logo o susto, o pulmão dilatado em um espasmo, uma imensa responsabilidade pela minha própria vida. Respirar não é como andar de bicicleta ou fazer sexo, coisas que não se esquece. Era como se as dificuldades que viriam pela frente tivessem me entregado um cartão de visita com um e-mail e um número de whatsapp anotados. Fora da água, podia ouvir o meu coração batendo, coisa aterrorizante. Toda mudança precisa doer assim, como um parto, uma topada, um tratamento de canal?

Emergi, flutuei e logo estava planando. A água salgada escorria pelos meus braços esticados para baixo, pelas minhas pernas, pingava da ponta dos meus dedos, do cabelo cheio de conchas. Voar era muito parecido com nadar embaixo da água. Flutuar em um fluido, se deslocar, livre, em qualquer direção, sonhar com um paraíso distante. A adrenalina me fazia sorrir, a luz do sol fazia todo aquele azul brilhar mais forte, o barulho das ondas era um rock progressivo que me levava longe. Subi aos céus como Santos Dumont, Yuri Gagarin, um urubu com fome que plana elegante e imenso em busca da carniça da vida, da parte que lhe cabe.

O frio aumentava conforme eu ia subindo, mas dava para ver cada vez mais coisas. Dei um grito de alegria quando reconheci minha velha casa, meu pai fazendo churrasco, meu irmão voltando da escola e ganhando um beijo na bochecha de minha mãe. Acho até que eles acenaram para mim, mas estava cada vez mais alto e eles não conseguiam ouvir minhas palavras. Só sentir, o que também era bom. Atravessei a atmosfera e me perdi na imensidão do espaço. Paz? Não sei, mas meu pai, que gostava tanto de programas sobre a natureza, ficaria feliz em saber que o mundo é azul quando visto do espaço.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]