Marcio Rosa
4 min readFeb 15, 2022

CLARA, NÃO TE ENTENDO

Clara, meu amor, não viaja. Não tô entendendo nada que você está me falando. Claro que não, ninguém me entende mesmo. Meu amor, esse papo de sequestro, de implante, de calor na cabeça, é loucura. Desde aquele maldito dia, quando fui sequestrada, ninguém mais entende o que eu falo. Ou escrevo. Maldito implante, me roubou a alma, a paz e as palavras. E agora vai levar meu namorado, que me trata como se eu fosse uma louca.

A penumbra do quarto cheirava suor e angústia. Um odor pesado e lascivo entorpeceu o pequeno cômodo cheio de roupas sujas espalhadas, onde o casal de namorados discutia sentado no tapete felpudo aos pés da cama de solteiro desarrumada. Marcelo, você é um merda mesmo. Nunca sacou nada de mim, nada do mundo, nada que não fosse suas vontades e seu pau, não ia ser agora que ia ser diferente. O silêncio da madrugada foi se preenchendo de estranhas falas de amor e ódio. Que raiva, Marcelo. Justo agora que eu preciso de ajuda, você vem com esse papinho de que não me entende. Vai se foder.

Não, seu babaca, eu não sou louca. Louca é a vaca da sua mãe, que só fez mimar você. O babaca do seu pai. Aquele idiota do Marquinhos, que se diz seu amigo. Louco é você, que nunca deixou de ser um moleque. Não sou eu não, viu? Louca é a puta que te pariu. Falo sim, falo da sua mãe e de quem mais me der na telha. Eu sei que ela fez minha caveira, que se acha só porque é terapeuta. Tudo pra proteger o filhinho, pobre menininho indefeso. Eu sou perseguida, Marcelo, não sou louca. Não precisa falar assim é o caralho. Você não aguenta as verdades da vida, moleque mimado. Você é uma farsa, Marcelo.

O reflexo embaçado no espelho da porta de correr do guarda roupas se arrepia com o bafo quente que chega de fora. Eu já costumava ficar puta quando duvidar de mim era só a mesma merda machista de sempre. Agora, todo mundo me acha louca. Principalmente você, Marcelo. Seu bosta, você estava lá e não fez nada, ficou só me interrogando e choramingando, feito um bebê de fraldas.

O vizinho de baixo reclamou do barulho. Fechamos a janela. O som estridente do metal da janela arrastando contra o trilho engastado me doeu profundamente. Agora começou a ficar realmente quente, e o cheiro azedo de suor ficou ainda mais forte, o ar mais espesso, o peito apertado, a traqueia se fechando.

Você não acredita, Marcelo, mas depois desse dia tudo mudou na minha vida. O quarto, cada vez mais abafado, ia encolhendo, e a escuridão se condensando. Parece que não me escuta. O que eu tenho é um maldito chip implantado na minha cabeça. Não é frescura minha, porra. É um chip. Eles usam essa coisa para me torturar. Quando ligam o aparelho, sinto a tampa da minha cabeça queimando, minha visão fica turva e, depois de algum tempo, eu desmaio.

Eu não estou maluca! Não admito que ache que eu estou louca, seu machista do caralho. Se você tivesse me ajudado, saberia do que eu estou falando. Se não fosse um bunda mole. O quarto foi ficando mais e mais quente, como se alguém tivesse ligado um aquecedor dentro de uma sauna. Clara, meu amor, eu não estou julgando você, só estou preocupado. Essa história, você há de convir, é um pouco estranha, você não acha? Limpa o suor da testa, limpa os óculos e dá uma bufada. Olha só, Marcelo, eu vou mostrar para você, te provar que eu não sou maluca. Olha esse caderno, olha só o que está escrito. Tá vendo? É a minha letra, né? Mas eu não escrevi nada disso. Alguém, ou alguma coisa, tem mexido no que eu escrevo, mudado as letras de lugar, alterado o sentido das frases.

Marcelo, meu amor, você está vendo? Percebe as mudanças que fizeram? Tão sutis, quase não dá pra ver. Isso é o mais impressionante. Eles são especialistas, fazem tudo de forma profissional, sem deixar vestígios. Ainda bem que você me conhece, que sabe como eu escrevo e penso. Veja só que incrível como eles disfarçam bem. Marcelo, porque você está tão quieto? O que você tanto folheia nesse caderno? Não está percebendo? O calor daquela luz branca tão estranha esquentou os meus olhos.

Ai meu deus, está começando de novo. Porque fui me meter a falar disso? Tá bom, eu paro, eu paro. Prometo que não toco mais nesse assunto, vou viver minha vida na linha, sem reclamações. Não aguento mais essa tortura, está doendo demais. E esse calor, acho que vou derreter em suor. Começa com um zunido, no topo da cabeça, bem aqui ó, e vai aumentando, descendo pelo corpo, como um bate estacas acertando o crânio. Agora está ficando cada vez mais alto, meu cérebro ardendo como uma profunda queimadura. Um autoforno dentro do meu crânio, a própria caldeira do inferno, o suspiro do capeta.

Marcelo, olha para o caderno, agora. Olha, olha. As palavras estão mudando. O caderno ferve feito um caldeirão, meu amor. Porque você está tremendo, querido? Como assim, não está vendo nada? Marcelo, filho da puta, porque você mente para mim? Porque não acredita no que eu falo? Porque você não acredita no que você mesmo está vendo?

Que merda é essa, Clara? Que está acontecendo? O quarto foi tomado por uma suave luz avermelhada, vindo de baixo para cima, enquanto o eco dos gritos ricocheteia pelas paredes. A dor é muita, Marcelo. Não precisa se assustar, é assim mesmo. O topo da cabeça fervendo, essa luz estranha no ambiente, o barulho de fagulhas estalando, um cheiro de queimado insuportável que asfixia. Claro que estou com medo, Clara. Parece que estamos dentro de uma fogueira. O caderno se iluminou feito um poltergeist. Deixa de ser bobo, Marcelo. Não tem nada de sobrenatural aqui. Os vivos, meu amor, são muito mais assustadores do que os mortos. São eles. Proteja-se!

Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]