FICOU ESCURO DE DIA

Marcio Rosa
5 min readOct 25, 2022

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Imagem: History Channel Brasil

Nuvens negras tamparam o céu às duas horas da tarde daquela estranha segunda-feira. Relampejou. Desde então, nunca mais se viu o sol na cidade de São Paulo. Um frio estranho, que nunca passava, vinha dos ossos e se acomodava nos bolsos, e logo foi virando uma tristeza, uma angústia, depressão mesmo. O samba na praça não rolava mais, a senhora faladora não descia mais na portaria, o contatinho não telefonava. A água da chuva, que não parou um só instante, estava cada vez mais grossa e escura. O jornal da tarde falava do aumento no número de separações, concordatas e divórcio e os comentaristas de política alertavam para a maior crise já conhecida da democracia liberal. Logo os parques e as escolas fecharam, assim como todos os teatros e bares. Afinal, ninguém tinha mais nada para fazer na rua quando não havia mais nem noite seguindo ao dia.

Todos os dias ao longo do último mês de agosto Sofia acordou antes da hora em que o sol deveria nascer. Fazia seu café solitária, contaminada pela tristeza da escuridão e ia para o trabalho verificar as imagens de satélite, tentar descobrir o que estava acontecendo. No caminho, passando pela marginal, notou que o rio estava cada vez mais sujo e fedido. As árvores estavam definhando, não se via mais pássaros na cidade, e mesmo os insetos estavam rareando. Somente as baratas e os ratos proliferavam. Estava particularmente nervosa naquele dia, pois precisaria apresentar um relatório informando seus superiores. Seus olhos estavam cansados, fundos da madrugada insone.

Chegando em sua sala abriu o computador. Passou a mão pela rosto negro, segurou os cabelos trançados, suspirou fundo. O que estava acontecendo? Seu chefe, aquele idiota, entrou esbaforido na sala, falando alto e cuspindo perdigotos. Já está nervoso, deve ter feito alguma cagada, pensou ela, enquanto observava com seus olhos de radar o ambiente, percebendo uma agitação incomum. Prepare-se — disse o parvo desalinhado — , que sua apresentação terá plateia distinta, gente grande do governo estará assistindo.

Assim que o chefe se afastou da sessão, Sofia reuniu seus colegas mais próximos e segredou com eles sobre a reunião que aconteceria, esperando conselhos. Seus relatórios estavam cheios de catástrofes naturais, perigos iminentes, mortes anunciadas. Os chefes, certamente, não iam gostar. Infelizmente, nenhuma resposta. João, seu amigo mais próximo, sorriu para ela, aquele sorriso lindo, e lhe deu um abraço. Tudo vai dar certo — disse no seu ouvido — , depois a gente conversa. Arrasa!

Além da tristeza que estava acometendo a todos, a ideia do fim do mundo aumentava a cada dia escuro, céus cobertos de uma nuvem negra e espessa que impedia de ver qualquer horizonte. Até mesmo alguns colegas de Sofia — pessoas esclarecidas, afinal — estavam estocando alimentos e construindo abrigos. Um dos colegas falava para ela sobre seus vizinhos que estavam formando clubes de sobrevivência coletiva, comprando sítios em Santana do Parnaíba. Outro contava como a região da Luz estava prosperando com o negócio da sobrevivência. Era a loucura entrando pelos corpos e mentes, escorrendo pelas bocas abertas.

Habilitou a câmera do computador e entrou na videoconferência. Outros quatro rostos olhavam para ela com olhos de pai e de juiz. Todos gentis senhores brancos de meia idade, de barba feita e terno escuro, que insistiram para que ela ficasse à vontade. Começou a falar assim que terminaram de se apresentar, importantes ministros e pessoas poderosas da sociedade. Mas logo foi interrompida, quando começaram a lhe pediram explicações sobre a pesquisa, questionaram a metodologia, e até mesmo sua idoneidade. Diziam estar preocupados com os perigos daquela situação, para o governo, para a economia e, em última instância, para eles mesmos.

— Nós sabemos com que tipo de gente estamos falando — disse um deles para uma Sofia, já assustada, que se afundou ainda mais na cadeira — A senhora pense bem — disse outro dos representantes do governo — , democracia é cada um ter a sua própria opinião — O que está acontecendo aí fora é uma coisa muito perigosa e difícil de entender. Dependendo das conclusões desse relatório, as coisas podem piorar muito — alertou o general — É muito autoritário, coisa de comunista mesmo, querer explicar tudo para todo mundo, sozinha. Nem na ciência, nem na guerra, nem mesmo para Deus temos opiniões iguais. Forçar isso é querer dividir as pessoas, criar partidos, guerras desnecessárias. Aqui ainda prezamos pela liberdade de expressão — ponderou o presidente do senado federal.

Sofia continuou sua apresentação, seguidamente interrompida, batalhando contra paredes, suspirando fundo pra ver se engolia com o ar alguma paciência.

— Esse relatório é ideológico — disse o representante das universidades, um cientista de renomado trabalho — Esse relatório é um perigo para a segurança nacional, pode causar distúrbios e desordens — disse o chefe das forças armadas — Pior de tudo, esse relatório é contra Deus. Afinal, ele criou o mundo para nós, e o mundo é eterno e imutável. A bíblia vale muito mais que esse seu relatório — disse, aos gritos, o pastor líder de uma grande igreja.

Sofia, mesmo no corner, manteve o relatório e a postura. Começou a falar com voz de cansaço e gestos longos.

— É só olhar pela janela, deputado, e verá que aquelas nuvens escuras tem a cara de demônios e o corpo de bestas — Caro colega pesquisador, estamos assistindo ao surgimento de um verdadeiro sistema de catástrofes, que qualquer criança pode deduzir e demonstrar — Senhor general, com todo respeito, mas a desordem social já está instalada. Ninguém aguenta viver no escuro, sob chuva ácida e controle da polícia — Esse é o meu relatório — respondeu Sofia, se levantando, mas ainda dando tempo de ouvir que ela estava despedida.

Sofia saiu chorando do prédio alto e envidraçado. A escuridão cobria tudo. Bando de idiotas. Seu amigo João esperava na porta, lhe deu um abraço apertado e um beijo na testa. — Não fica assim, eles não valem a pena — consolou ele.

— O que vamos fazer? O que você acha que eles vão fazer?

— Não dá pra saber. Não entenderam uma palavra do relatório. São burros como uma porta. Ainda acham que dá pra escapar da tragédia. Tudo homem, branco, velho, babão. Essa gente que acha que sabe tudo, mas não passa de um bando de idiota.

— E agora?

— Agora eles que se fodam — disse Sofia, abraçando João — A situação é muito pior do que eles podem imaginar. O mundo está para acabar!

O céu seguia escuro como um buraco fundo, a chuva aumentou, o mau cheiro impregnava no nariz. Sofia deu a mão para João e se reconfortou em seu ombro. Um trovão rebimbou nos céus iluminando a escuridão, e deu pra ver que alguma coisa estava explodindo. Logo que entraram no carro, João fez uma ligação. Não tinham outra alternativa. Passou o telefone para Sofia, que ainda chorava de raiva, mas tomou ar e procurou se recompor:

— Não senhora, eles não sabem de nada. Nem que os satélites já caíram. Vai ser uma surpresa bem desagradável quando finalmente conseguirem descobrir — explicou com calma, secando as lágrimas com as costas das mãos — Sim senhora, a gente conseguiu extrair todos os dados necessários, sem deixar rastros.

Sofia desligou o telefone e João deu um beijo cúmplice em sua parceira discreta.

— Logo tudo vai se resolver. Mas a partir de agora precisamos redobrar a atenção — assegurou João, vestindo a sua máscara e fechando os vidros do carro.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]