Mais rápida que a luz

Marcio Rosa
5 min readDec 21, 2022

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@dredmstime

Acho que só me dei conta que seria a primeira pessoa a viajar mais rápido que a luz quando eu já estava sentada na cadeira de piloto, prestes a decolar. O foguete começou a trepidar conforme avançava a contagem regressiva. Parecia um enorme cipó de mariri, que me levaria mais longe do que eu imaginava. Assobiei uma música do Tom Zé que minha mãe adorava para dar uma relaxada. Astronarta libertado, minha vida me urtrapassa, em quarqué rota que eu faça. Não conseguia parar de pensar na Bárbara de jeito nenhum.

A aceleração me pressionava o peito, como angústia por uma resposta que não veio. Percebi os trancos de cada um dos três estágios se separando enquanto avançava para o espaço sideral. Olhei pela janela e a Terra se afastava lentamente. Eu era como uma pescadora, que ganha a vida no mar mas precisa voltar com saudades de seu amor.

Desliguei o piloto automático e assumi o controle para a acoplagem na S.A.C.I — Sonda Aeroespacial de Capacidade Intergaláctica. Era um módulo especial preso a um grande anel que produz a antimatéria necessária para a viagem Mais Rápida que a Luz (MRL), em órbita próxima da estação espacial. A manobra foi tranquila e limpa. Ouvi um estalo de objetos metálicos se encontrando, senti um ruído arranhado das peças se deslocando uma sobre a outra, e finalmente o apito do ar pressurizado lacrou o encaixe.

A bordo da S.A.C.I. dei início aos procedimentos para a viagem MRL. Liguei os motores do anel de antimatéria fazendo dispersar a energia negativa, e uma bolha de espaço tempo se formou em torno da nave. Um zunido alto e grave tomou conta do ambiente. A energia foi se acumulando, uma distorção espacial em forma de anel se formou e a nave começou a se mexer. Lembrei das equações de Alcubierre, e do sorriso de Bárbara.

Minha visão ficou distorcida e mandalas coloridas se formaram em toda a circunferência da bolha de espaço tempo. Um apito alto pressionava o meu tímpano. No fundo da nave apareceram fractais luminosos e um brilho vermelho imenso. No fundo das minhas dúvidas surgiu um medo estranho de tudo o que eu não conhecia. Era a primeira vez que um ser humano estava mais próximo de outra estrela que do sol.

Ainda maravilhada com a imagem, fui despertada subitamente quando o supercomputador alertou para graves alterações na distribuição da energia negativa. Ouvi um barulho alto de pancada reverberando no casco. Senti um solavanco, como uma batida de carro. Os aparelhos de navegação mostraram uma mudança brusca na direção da nave. Era pra eu visitar, pela primeira vez, outro sistema estelar, mas ia morrer antes de chegar. E sem ouvir a resposta de Bárbara. Chorava baixinho quando os alarmes dispararam e as telas apontaram erros críticos múltiplos na S.A.C.I.

De repente, eu estava de novo passeando de shorts no espaçoporto e a gente se encontrava. Bárbara brilhava como uma estrela. Ela fez alguma gracinha, eu abri meu melhor sorriso. Estava me sentindo um pouco sozinha, me fez um bem. Era minha amiga, a gente trabalhava juntas, mas nunca tinha olhado pra mim desse jeito. Mecânica de manutenção. Estava tão linda. Naquela hora, não consegui fazer muito, abobada que fiquei. Quando voltava para o trabalho, resolvi mandar mensagem. Será que ela vai me responder, nessa confusão toda que é a minha vida?

Ai, estou me sentindo péssima agora. Não deveria ter feito isso, agora vou morrer passando vergonha e agoniada. Depois de anos casada, os filhos crescidos, a primeira cosmonauta a ultrapassar a velocidade da luz, ia começar a namorar mulher a essa altura do campeonato? No fundo, só queria ser eu mesma, em paz.

Enquanto eu me acabava em saudades e dúvidas, um portal se abriu entre o espaço e a minha consciência. Senti uma atração inevitável. Tentei relaxar e me imaginei em cima de uma bicicleta voadora. Quando passei para o outro lado, sobrevoei um planeta coberto por altas árvores espiraladas com folhas azuis e amarelas, enormes flores roxas e vermelhas, uma relva em tons de rosa choque e lilás e grandes extensões de arbustos geométricos. Dei um rasante e samambaias coloridas explodiram em milhares de espirais de luz. Uma multidão de pequenos seres em tons fluorescentes estavam por toda parte como extensões do próprio planeta, infinitas cerdas de arco íris que me sorriam e convidavam para aterrissar. Assim que toquei o chão, rapidamente fui envolvida por trepadeiras cheirosas e gentis. Fiquei um pouco assustada, mas pude ouvir a voz serena de Bárbara me pedindo calma.

Esperei meus olhos se acostumarem ao ambiente escuro, e percebi que estava imersa dentro de algum líquido translúcido, mas respirando normalmente. Ao fundo, havia um som alto e compassado, como a batida de um tambor de candomblé em uma cachoeira. O som hipnótico me manteve alerta, dentro de uma sensação de vida e calor. Tentei me mexer, mas o espaço era pequeno. Abracei meus joelhos e fiquei ali, quentinha.

***

Quando abri os olhos, estava deitada em uma cama de hospital, sob uma luz muito branca. Fazia um pouco de frio, mas eu estava bem agasalhada, ainda que meio grogue, com agulhas espetadas nos braços, eletrodos e sensores espalhados pelo corpo. Ouvia um outro som repetitivo, um bip eletrônico, e vozes murmurando em meu entorno. Eu podia ver no semblante dos médicos um grande espanto.

Durante a viagem a comunicação era impossível, e só dava para acompanhar a trajetória da nave de forma indireta, observando o traço da deformação produzida no tecido do espaço tempo. As equipes em Terra detectaram um erro fatal na trajetória próximo do destino final, provavelmente um choque com algum objeto espacial, um desses imensos imprevistos da vida. Pelos cálculos, a nave deveria ter explodido comigo dentro, ter sido esfarelada em poeira cósmica.

Estranhamente, na hora prevista para o retorno, a S.A.C.I. apareceu no ponto de encontro sem nenhum arranhão. As manobras para o retorno foram feitas de acordo com todos os protocolos, mas não havia registro dos meus sinais vitais durante todo o trajeto de volta, conforme os instrumentos médicos de bordo. Me fizeram uma série de perguntas, tentando reconstruir o que tinha acontecido, mas eu não lembrava de nada que pudesse ajudar. Minhas memórias mais pareciam uma viagem de ácido, cheia de cores e imagens geométricas. Não tinha ficado nenhuma marca em meu corpo nem nada gravado nos computadores da nave. As pessoas falavam de milagre, de evento inexplicável, volta no tempo e ressurreição. Mas nada disso importava muito.

Bárbara estava ali, na beira da cama, olhando para mim e segurando minha mão. Ela me falou, com um sorriso suave, que aceitava o meu convite. Trazia flores, e contou que me fazia companhia desde que retornei. Me deu um beijo suave e me fez sentir viva. Era a primeira vez que eu beijava uma mulher, e foi como ressuscitar. Preciso demais viver isso.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]