OS SONS DO SILÊNCIO

Marcio Rosa
4 min readNov 9, 2022

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Hello darkness, my old friend

I’ve come to talk with you again

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Os sons do silêncio preenchem todos os vazios da cidade fantasma. Não ouço barulho de trabalho, de carro, de passarinho nem de gente. Todos os dias são iguais, e não tenho ninguém com quem conversar sobre o tédio cotidiano. O frio da tarde azulada de outono entra pelos meus ossos enquanto eu caminho pelas ruas do centro, vagando entre os prédios em busca de alguma novidade.

Minha solidão é, antes de tudo, uma ausência. Minhas saudades são pesadas e duras, enormes pranchas de madeira de lei. Lembro cada vez menos da textura das vozes, do peso dos corpos, do formato dos rostos. A cada hora que passa, cada vez que respiro ou bate meu coração, um pequeno detalhe das pessoas que conheci, das que amei e odiei, se perde no esquecimento. Gosto de futebol, de novela e de literatura latina. Adoro Ubatuba e gostaria de conhecer a China. Mas faz tanto tempo que não ouço ninguém falar desses assuntos ou lugares. Nem eu mesmo.

O viaduto passa por cima do enorme vale, no meio da cidade, cheio de concreto e luzes, cercado de avenidas por todos os lados. Quanta gente não terá passado por aqui, em todo o tempo do viaduto? Como vultos ou hipóteses, tudo pareceu cheio de novo. O senhor de chapéu que escreve poesia atravessando a avenida. O barulho de ar comprimido do ônibus abrindo a porta, e o passageiro saudando o motorista. O motoboy cansado passando a milhão, levando na mochila quatro refeições do restaurante árabe para os funcionários do escritório de advocacia. As pombas levantando voo e arrulhando assustadas quando o moleque solta a mão do pai e corre em direção delas. O silêncio está, justamente, no lugar onde todos eles deveriam estar agora.

Sou um forasteiro neste mundo vazio. Não reconheço mais os lugares por onde passo. Só sei que não pertenço a essa solidão. Não me falta nada material, ainda que dê muito trabalho viver totalmente sozinho. A cidade está totalmente vazia, mas as geladeiras, os chuveiros, os semáforos de trânsito e até mesmo o ar condicionado do mercado seguem funcionando. Tenho um estoque de comida praticamente infinito, abrigo e roupas. Mas não dá para pedir uma pizza no delivery.

Já faz muito tempo que eu vivo sozinho no mundo, na cidade. Nem sei mais quanto. Também não me lembro o que aconteceu para que as coisas ficassem dessa forma. De que importa saber? E pra que serviria essa informação, se não posso contar para ninguém? Estou muito cansado dessa solidão. Talvez fosse melhor ser maluco, que isso fosse uma grande alucinação. Ou mesmo morrer. Qual seria a diferença? Quem iria chorar por mim?

Os dias se arrastam tediosos e repetidos. Nas horas mais difíceis eu costumo conversar com minha namorada, brincar com o meu filho ou mesmo contar as novidades para a minha mãe. O difícil é que nenhum deles está lá para poder me responder. Só me resta vagar pela cidade, percorrer as distâncias das avenidas e as alturas dos viadutos, sempre procurando alguma novidade que possa me salvar dessa solidão imensa.

Fico preocupado com a minha sanidade quando começo a ouvir pessoas que não estão aqui me respondendo com naturalidade. Algumas delas até me advertiram que isso é coisa de maluco. Foi mesmo estranho perceber que a realidade estava se desfazendo enquanto eu conversava com uma turma inexistente de amigos. Foi o medo de estar pirando que me fez sair para caminhar hoje a tarde. Um pouco de ar puro certamente vai me fazer bem.

Ouço vozes me chamando. Como estou pensando, nesse momento, sobre minha sanidade, sei que elas são verdadeiras, que não posso estar delirando. Meu coração acelera e saio correndo em direção delas. Não posso evitar um grito de alegria. São vozes conhecidas, das pessoas que eu amei na vida, e que estão sumidas faz tanto tempo. Uma lágrima suave desce pela minha face, e chego a esboçar um sorriso.

Mesmo com algum receio de que tudo não passe de uma ilusão, acompanho os sussuros que maculam o silêncio. Imagino as histórias que eu tenho para contar, os abraços que quero distribuir, o sorriso do meu filho, de quem sinto tanta falta. Lembro da música, The sounds of silence, e torço para que ela possa romper o horizonte do silêncio. Quem estaria me chamando com tanta intimidade? Como será que responderiam? Será que teriam carne e substância para me beijar de volta?

Contudo, em um lapso estanco a corrida para entrar em desespero. O que eu vou fazer se encontrar com essas pessoas? Se elas realmente estiverem por lá, o que eu vou dizer para elas? Talvez o silêncio azulado do outono fantasma seja mais confortável mesmo. As vozes, cada vez mais familiares, seguem me chamando, rompendo o silêncio. São apenas palavras, eu sei, mas fico com muito medo. A cidade fantasma engoliu minha alma. Sigo caminhando pela metrópole vazia, fugindo das vozes que me perseguem e aterrorizam.

Realmente, não aguento mais ficar sozinho.

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Marcio Rosa

Realismo mesmo é ficção científica. @marcioraz [ele/dele]